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    InícioOpiniãoLouvado sejas? A Terra já não canta, chora

    Louvado sejas? A Terra já não canta, chora

    Vivemos tempos de ruído — climático, social, ético. Mas há um silêncio mais ensurdecedor: o da nossa resposta à agonia do planeta. A Terra chora — literalmente — sob os efeitos da predação sistemática que o modelo económico dominante insiste em mascarar de progresso. E enquanto isso, grande parte da sociedade observa com apatia civilizada, como se a catástrofe climática fosse um fenómeno externo, alheio e inevitável.

    A verdade é que não é inevitável. É induzida. É escolha.

    Em pleno século XIII, São Francisco de Assis ousou propor uma visão absolutamente revolucionária da relação entre o ser humano e o mundo natural. No seu Cântico das Criaturas, não se limita a louvar o Criador — louva também a criação, conferindo dignidade espiritual ao sol, à água, ao vento, ao fogo, aos animais e à própria Terra, a quem chama “irmã e mãe”. Esta não é apenas uma metáfora poética: é uma declaração de cosmologia ética e relacional.

    Hoje, essa visão profética revela-se um antídoto contra a lógica utilitarista que colonizou a nossa relação com o mundo natural. O que em Francisco era gratidão, em nós tornou-se apropriação. O que era reverência, converteu-se em domínio. De irmandade passámos à exploração. De comunhão à posse.

    Os eventos climáticos extremos que se multiplicam um pouco por todo o mundo — como as inundações devastadoras que recentemente atingiram o estado brasileiro do Rio Grande do Sul — são apenas o sintoma mais visível de uma doença mais profunda: a rutura espiritual e política entre a humanidade e o planeta que a sustenta. A crise ecológica é, acima de tudo, uma crise de relação. E, como tal, exige não apenas soluções técnicas, mas uma reconstrução simbólica e moral da nossa presença no mundo.

    Francisco não era ingénuo. Sabia que a verdadeira conversão começa no coração, mas não termina aí. A sua vida foi profundamente política, no sentido mais nobre da palavra: um gesto constante de resistência à lógica de poder, de acúmulo, de violência estrutural contra os mais frágeis — humanos e não-humanos.

    Na encíclica Laudato Si’, o Papa Francisco retoma esse legado e denuncia:

    “O ambiente humano e o ambiente natural degradam-se juntos, e não poderemos enfrentar adequadamente a degradação ambiental se não prestarmos atenção às causas que têm a ver com a degradação humana e social.” (LS, n.º 48)

    A questão climática, portanto, não pode ser tratada como uma abstração científica ou um capricho ideológico. Trata-se de uma questão de justiça intergeracional, de ética da responsabilidade e de sobrevivência da própria civilização.

    Por isso, não basta sensibilizar. É urgente politizar o debate ecológico.
    Desconfiar do greenwashing. Denunciar a hipocrisia das cimeiras internacionais que acumulam promessas e adiam compromissos.
    E mais: é urgente reconstruir uma espiritualidade ecológica que nos reconcilie com a Terra — não como recurso, mas como casa; não como propriedade, mas como sujeito.

    A juventude que hoje sai à rua em protesto, que ocupa escolas, que enfrenta tribunais e governos, representa o novo rosto desse franciscanismo radical. Um rosto laico, plural, informado — mas profundamente inspirado por aquele mesmo grito:
    “Esta nossa irmã geme por causa do mal que lhe provocamos.”

    Talvez já seja tarde para evitar muitos dos estragos. Mas nunca será tarde para agir com lucidez, com coragem e com responsabilidade histórica.
    Se São Francisco estivesse hoje entre nós, não estaria a contemplar passivamente as flores. Estaria a bater à porta dos ministérios, das empresas e das consciências. E talvez, mais uma vez, se fizesse ouvir primeiro entre os pobres, os animais e as árvores.

    A Terra já não canta.
    Mas ainda não se calou.
    A pergunta é: vamos continuar a ignorá-la?

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    Paulo Freitas do Amaral
    Paulo Freitas do Amaral
    Docente universitário e do ensino básico e secundário, historiador e político português e é descendente da família real portuguesa, de Pedro Rodrigues do Amaral, conde palatino e colaborador do Papa (séc. XV).

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