Nos primórdios da humanidade, os seres humanos, já animais gregários, não tinham habitação fixa, a sua base alimentar assentava numa atividade de recoleção de frutos e outros derivados que a natureza proporcionava, pelo que eram essencialmente povos nómadas, era completamente inexistente o conceito de “habitação” pois o que contava mesmo era o território onde proviam as suas necessidades, levando-os a percorrer grandes distâncias, tendo por teto apenas as cavernas e grutas, também elas, proporcionadas pelos acidentes geográficos.
Naturalmente o teto proporcionado pela natureza, não despertava o sentimento de posse, pois o seu uso era efémero, na medida em que exaurido os frutos circundantes, impunha-se procurar noutras paragens os meios de sobrevivência adequados.
Com a descoberta do fogo, criaram-se condições de assentamento numa dada região, bastando apenas existir caça suficiente, para prover a prole, e para tal não era necessário que todos estivessem envolvidos nas actividades de caça, reservada aos homens, as mulheres, a quem competia a recolha de frutos silvestres, não precisavam de se deslocar, razão porque as comunidades de seres humanos começaram a providenciar um teto mais permanente, fixo, fosse aproveitando o que a natureza fornecia (cavernas, grutas, etc), fosse por recurso á construção de estruturas permanentes, utilizando inicialmente madeira e pedra, permitindo inclusive uma outra evolução muito importante, a criação de gado. Nascia assim o conceito de habitação, mas não só, nascia também o direito á posse de uma habitação.
Com isto desenvolveram-se povos, civilizações, comunidades, assentes no direito de propriedade composto, pelo teto (habitação) e por território, assim a posse passou a ser estruturante para os seres humanos, cuja evolução histórica conduziu ao nascimento de Reinos, e mais tarde Países.
A entrada nestes reinos não era livre e dependia do senhor que tinha a sua posse, o Rei, numa espécie de protecionismo nacional, ao ponto de mesmo da saída do reino por parte dos súbditos obedecer á mesma lógica, só com a autorização do Rei. Isto, na idade média, considerando que os pretendentes a sair ou entrar no Reino eram cristãos, pois se de outra religião se tratasse as restrições eram muito maiores. A exceção, em Portugal, era para os não cristãos que já se encontrassem no território, antes da conquista pelos portugueses, a esses era-lhes permitido permanecer na condição de contribuírem para a economia local, sobretudo na lavoura, o que levou D. Afonso Henriques a lavrar no foral de Lisboa “ai dos que apoquentarem os salayos” sendo estes os árabes que se dedicavam á lavoura nos arredores de Lisboa, sobretudo na lezíria de Loures e Odivelas, mas não só, também aqueles conhecedores das ciências, pois os árabes eram tecnologicamente mais evoluídos, nas artes, nas ciências, etc.
Mas aceitar novos migrantes isso não. Obviamente que, se não se forçavam estes árabes a acolher o cristianismo, sendo-lhes permitido, a eles e outras confissões religiosas, manterem o seu credo, tal só podia acontecer intra muros da respectiva residência. Nem mesquitas, nem sinagogas, nem templos de outra natureza os únicos templos permitidos eram as igrejas católicas. Mesmo outros ramos do cristianismo, como cátaros, sobre quem um Papa convocou uma cruzada para eliminar os cátaros do languedoc, salvando-se muito poucos que se refugiaram no Reino de Portugal, em Castelo Branco, em segredo, e ainda os Priscilianos, coptas e outros.
Mais tarde as coisas haveriam de evoluir no sentido contrário e a tolerância inicial esfumar-se-ia consequência das tentativas da invasão da europa pelos muçulmanos, e a invasão do oriente pelos cristãos, fomentando um ódio tal que ainda hoje perdura.
Assim o Direito á habitação tinha como condicionantes o fator religioso.
- O Direito á habitação como direito social!
A evolução das sociedades desde a idade média até hoje, esbateu as restrições ao direito á habitação, eliminando o factor religioso, pouco importando a fé professada por uma pessoa, numa espécie de ecumenismo social do direito á habitação.
Com o advento das ordens constitucionais o direito á habitação consagrou-se como um direito social por excelência, ao ponto do direito de propriedade ser intocável, na Europa, ficando célebre a expressão inglesa “a casa de um cidadão é o seu castelo”, ou a expressão portuguesa “quem casa, quer casa” glosando a característica polissémica do vocábulo “casa”.
Ainda hoje a habitação é inviolável e mesmo as autoridades policiais só podem franquear uma habitação sem autorização do proprietário munidos de um mandato judicial, e mesmo assim só após as 7 horas da manhã.
Acresce que este Direito á habitação se escora num outro direito que é o da posse, ou seja, uma habitação tem necessariamente um (ou mais) proprietário, que dela pode dispor consoante o seu entendimento.
- Os movimentos internos de ocupação espacial (migrações)
A habitação, em Portugal, foi sempre um problema, fosse porque durante muito tempo o filho mais velho (o morgado) herdava tudo, em detrimento dos seus irmãos mais novos, que tinham de se desenrascar, quantas vezes através de casamentos com filhos de pais mais abastados, outras vezes, atrevo-me a dizer, sem outra base que não a experiência e conhecimento pessoal, saindo das suas terras de nascimentos e migrando para outras zonas do País mais atraentes, em termos de nível de vida e oportunidades, com especial destaque das grandes cidades, Lisboa e Porto
Os mais aventureiros, ou empreendedores, optaram por migrar para as colónias, onde as oportunidades de terras generosas, uma grande abastança de matéria primas, proporcionavam condições ímpares para a construção de projetos pessoais, familiares, etc., sem receios.
O primeiro contato de muitos destes portugueses foi mesmo a guerra colonial, para onde foram enviados em serviço militar, e depois, contagiados com um “não sei quê” de África ou por lá ficaram, ou para lá voltaram findo o seu dever militar. Haveriam de regressar, á metrópole, eram á volta de 700.000 portugueses, as vítimas da descolonização. Ficou-lhes como prémio de honra o terem “inventado” novos países, a partir de territórios tribais.
Outros ainda optavam pela emigração para outros países, a salto, ou seja, á socapa, não das autoridades de destino que os acolheram, pois, os imigrantes portugueses eram sobretudo trabalhadores, humildes, não iam me busca de subsídios ou ajudas estatais, não exigiam casas, e não vilipendiavam quem os acolheu, mas sim das autoridades portuguesas que dominavam com mão de ferro o povo e as suas consciências, aquela com sucesso, mas esta sem nunca o conseguirem. A diáspora portuguesa conta com pelo menos 5 milhões de portugueses, espalhados por vários países, sendo o seu maior contingente em França, atingindo sensivelmente 10% da população francesa.
- O advento dos Bairros Clandestinos
Com esta dinâmica migratória interna assistimos durante o século XX ao nascimento e crescimento acentuado de uma nova realidade conhecida por “Bairros Clandestinos”, não porque as pessoas ocupassem propriedades rústicas de terceiros, pois que eram os seus legítimos proprietários, mas sim porque vendo-se na posse de um terreno onde podia cultivar batatas e couves, olhavam para o mesmo e ainda sobrava muito espaço para construir uma casita.
Daí até invocarem o Direito Constitucional á Habitação foi um piscar de olhos, e surgiram vivendas, prédios, apartamentos, quer por recurso a autoconstrução, quer contratando empreiteiros especializados, a estas habitações faltavam dois documentos “mágicos” que todos os bairros almejavam:
- Primeiro o Alvará de Loteamento dos respetivos bairros, através do qual se reconverte prédios rústicos (terrenos com apetência agrícola, divididos em avos) em prédios urbanos (terrenos para construção predial, divididos em lotes).
- O segundo a Licença de utilização de cada fração, no qual se estabelece se o prédio é para habitação ou comércio.
O fenómeno dos bairros clandestinos foi de tal monta que o legislador criou diplomas específicos para os mesmos, atendendo ás suas especificidades, e reclassificando estes bairros clandestinos em “AUGI” áreas urbanas de génese ilegal.
Claramente, o problema da habitação em Portugal foi drasticamente mitigado com os bairros clandestinos (ou augi se preferirem), com as autarquias locais na primeira linha da legalização dos bairros, e a eliminação de barracas, como foi o caso exemplar de Lisboa, que acabou com o Casal ventoso e outras barracas existentes na capital, alojando a população desses agregados populacionais degradados e sem condições, em habitação social construídas a expensas próprias. Chegou a haver injustiças, claro que sim, foram muitos os casos de famílias retiradas de barracas e alojadas em apartamentos em Chelas, e a barraca era de imediato ocupada apor outras famílias, que assim reclamaram igualmente apartamentos, tendo sido a solução derrubar a barraca assim que era desocupada.
Já para não falar de famílias ocupando barracas, que sendo proprietárias de vivendas nos arredores de Lisboa, lograram obter apartamentos dados pela Câmara da Capital. E casos em que a tipologia de apartamento atribuída era muito superior ao agregado familiar, porque no momento do recenseamento feito pelos serviços camarários as famílias declaravam pessoas em comunhão de teto sem o serem.
isto durante o século XX, a imigração, as colónias africanas, embora estas com o retorno dos portugueses, viessem a engrossar a demanda de casas. Seja como for, tudo se confinou a problemas internos, num Portugal em rápida transformação sobretudo a partir da sua adesão á CEE. O final do século XX, e principalmente adentrando o século XXI, ao crónico problema habitacional de Portugal, somou-se-lhe um outro, cuja pressão na disponibilização de soluções de casa do estado, passou a ser um “sem fim”.
- A exportação/importação ativa do Direito á Habitação.
Os empresários portugueses não se cansam de reclamar contra a falta de mão de obra, sobretudo para as obras públicas em curso, queixando-se que á falta de trabalhadores portugueses têm de se socorrer de mão de obra estrangeira. Até aqui nada a obstar. Porém o que se propõem estes empresários, ou melhor Patrões, oferecer como salário a esta mão de obra? O salário mínimo.
O efeito desta demanda e da oferta é devastador, porque a consequência é igual á daquele senhor do Bairro do talude em Loures que se queixava a uma das TVs que lá foram ser de São Tomé, ter vindo para Portugal há 3 anos, e auferir o salário mínimo. O Patrão deste cidadão São Tomense, provavelmente é daqueles que grita aos sete ventos que Portugal precisa destes estrangeiros, mas apenas tem para oferecer o mínimo de salário, sem mais, bem sabendo que com esse valor o cidadão São Tomense nunca vai conseguir bastar-se a ele próprio, e que está condenado a uma vida de trabalho escravo e á indigência pessoal e familiar.
Um Empresário num caso semelhante só é sério se oferecer um salário compatível com a vida digna do seu trabalhador, e isso não é compaginável com o salário mínimo, mas sim com pelo menos o dobro, ou em alternativa, providenciar condições de habitação digna.
O cidadão São Tomense, assim ludibriado, porque ninguém lhe explicou que com um tão magro salário, em Portugal, não consegue sobreviver, e emigra em busca de um sonho que nunca se realizará. Estou certo de haver casos em que exista um real conhecimento disto, mas a ilusão do Estado Português ser um estado que cuida de todos, conceder benefícios que no seu país de origem não existem, e, milagre dos milagres, até dão casas, nem que para isso se tenha de viver numa barraca até obter uma, obviamente que isso é um poderoso incentivo. Afinal já há casos desses, porque não mais um?
Na perspetiva de São Tomé e Príncipe, para continuar com este exemplo que é representativo, este País está objetivamente a exportar um problema social para outro País, Portugal no caso. Por outro lado, esta exportação de problemas sociais, tem como resposta uma importação de problemas sociais, pois Portugal não impõe nenhuma barreira a um estrangeiro sem um mínimo de condições de subsistência em Portugal, sendo o corolário natural, convocar a segurança social, operadores de saúde, e as autarquias locais para resolverem esta exportação de problemas sociais de outros países.
Mas o pior ainda, é que ao resolver os casos já existentes, rapidamente virão outros nas exatas condições destes.
Ora é aceitável convocar o contribuinte português para solucionar os problemas sociais de outros países? Sim porque no caso deste cidadão São Tomense, não vão ser 3 anos de descontos para a segurança social que vão cobrir as ajudas que necessária e forçosamente o estado português vai ter de prover, pois ao permitir a entrada no País de alguém sem a mínima condição de aqui se estabelecer assumiu um compromisso que agora tem de honrar – resolver-lhe o problema.
Mas se daqui para a frente isto não se alterar, então estamos perante um crime de lesa pátria. E isto nada tem a ver com direita nem esquerda. Tem a ver com a sobrevivência do país.