A Quercus — Associação Nacional de Conservação da Natureza, em particular o Núcleo Regional de Aveiro, vem por este meio manifestar a sua profunda preocupação e desaprovação face à forma como o executivo cessante da Câmara Municipal de Aveiro procedeu no processo de adjudicação do projeto de loteamento dos terrenos da antiga lota.
A decisão renova a atenção pública sobre um processo que tem suscitado críticas continuadas pelo seu desenho, timing, escassez de envolvimento público e fragilidade ambiental. (cf. Notícias de Aveiro)
1. Falta de clareza no processo e cunho de “facto consumado”
Desde o início, este processo foi marcado por uma lógica de privilégio para decisões com poucos momentos de debate público substancial. O executivo camarário afirmou que vai avançar “de imediato” com projeto urbanístico após a tomada de posse dos terrenos da antiga lota (11 ha junto à Ria) e estudos iniciais de caracterização do terreno. Contudo, esse anúncio público de ação rápida suscita dúvidas: que garantias existem de que a definição do projeto estará à altura dos desafios ambientais, paisagísticos, sociais e climáticos que a zona impõe? Num território tão sensível, não basta dizer que vai proceder-se a limpeza, desocupações ou demolições: é obrigatório que o planeamento que venha a ser adotado obedeça a princípios de gestão integrada, visão de futuro e participação efetiva dos cidadãos.
2. Incompatibilidade com os princípios da Quercus e críticas já expressas
A Quercus Aveiro já se pronunciou contra outros empreendimentos urbanísticos de grande impacto — como o Plano de Pormenor do Cais do Paraíso, que propõe uma torre de 12 pisos (600 camas hoteleiras) — qualificando-o de “projeto insustentável para a paisagem, mobilidade e identidade urbana”.
Nesse comunicado, a Quercus aponta que:
· a volumetria pretendida rompe a escala urbanística envolvente e cria uma barreira visual entre a cidade e a sua Ria;
· haverá prejuízos sérios ao aproveitamento solar e à qualidade de vida nos bairros ribeirinhos;
· o aumento do tráfego rodoviário e a pressão sobre estacionamento são previsíveis, sem contrapartidas claras de mobilidade sustentável;
· o projeto dispensa Avaliação Ambiental Estratégica e Estudo de Impacte Ambiental — violando disposições legais para empreendimentos com mais de 300 camas.
Esses argumentos são pertinentes e aplicáveis também ao loteamento da antiga lota: não se pode admitir que uma intervenção estrutural na zona portuária/ribeirinha avance com dispensa indevida de estudos, ou com participação pública reduzida e superficial.
3. Riscos ambientais e fragilidade territorial
A área da antiga lota está diretamente ligada à Ria de Aveiro, numa zona vulnerável a efeitos de mareação, alterações climáticas, riscos de inundação e pressões sobre ecossistemas lagunares. A impermeabilização de solos, o aumento da densidade de construção e a obliteração de zonas de transição entre terra e água comprometem a resiliência ambiental e a capacidade de adaptação da cidade face ao clima.
Além disso, a opção por um loteamento municipal (em que o Município aprova projeto de loteamento na sua esfera) impõe ainda mais deveres de rigor, dado que a autarquia será diretamente responsável pelas infraestruturas urbanísticas e ambientais futuras.
4. Participação pública simbólica e janela de consulta mal localizada no calendário
Nos casos já contestados pela Quercus, o período de consulta pública coincidiu com épocas de férias e período pré-eleitoral, obstruindo a participação efetiva e crítica da população. Esse tipo de agendamento de consultas tende a favorecer queixas pontuais, mas dificulta o envolvimento da comunidade local, técnicos independentes ou associações ambientais.
Um processo urbanístico de grande impacto exige que a cidade inteira – moradores, associações, especialistas – possa intervir de modo informado, questionando premissas, volumetrias e alternativas.
5. Legitimidade democrática e legado a cumprir
Este executivo cessante deixará uma marca indelével no território aveirense. Se optar por deixar apenas projetos ambiciosos, mas frágeis tecnicamente e contestados, estará a legar à nova administração uma herança de conflitos.
A Quercus exige que:
1. o loteamento da antiga lota avance apenas com estudos técnicos robustos (EIA / Avaliação Estratégica ou equivalente), plenamente públicos e sujeitos a auditoria independente;
2. o processo de participação pública seja alargado, com períodos adequados, sessões presenciais e digitais, e real consideração de contributos recebidos;
3. sejam avaliadas alternativas de menor impacto, com uma densidade de construção e volumetrias que não tirem identidade à zona ribeirinha;
4. não deverá haver lugar a edifícios de habitação;
5. o novo Executivo, desde o primeiro dia, reveja os contratos ou pré-adjudicações sem justa fundamentação, para assegurar que não se avança com projectos que não correspondam ao interesse público.
A cidade de Aveiro, cidade-laguna por excelência, não pode tolerar que decisões de urbanismo se façam ao arrepio do território, do ambiente ou da própria paisagem identitária. Que a nova administração assuma compromisso sério com a transparência, o rigor técnico e a sustentabilidade – para não se deixar governar por projetos que, no futuro, serão vistos como feridas abertas no tecido urbano e ecológico.






