CAFÉS DE LISBOA (part1)
O Café Restaurante Vavá na Av de Roma cruzamento com a Av EUA não sendo um dos meus cafés de eleição, mesmo porque nunca fui muito dado a cafés e conversas circunstanciais, sempre por lá parava pelo menos uma vez por semana. Outros foram a Grãfina e o Nova Iorque, um em frente do outro, no final da avenida dos EUA, lado Campo Grande.
O Vavá nasceu em 1958, criado por uma dupla de gerentes, dois irmãos, Petrónio e Luís Gonzaga. Irmãos que apenas se pareciam no apelido, e igualmente na gentileza, dado que um era basto volumoso, de presença imponente, arrastando por detrás do balcão uma bonomia ruborizada, enquanto o outro, mais discreto e aprumado, ia deslizando delicadamente pelo mesmo balcão. Às vezes em simultâneo, outras revezando-se no comando das operações.
O Vavá que eles idealizaram era um espaço enorme, que abrangia o que ainda hoje lhe compete, e ainda o que o Banco BPI agora ocupa adquirindo o espaço, julgo que ainda por lá estará. O Vavá não era apenas o dobro, em extensão, à superfície, mas ainda possuía uma extensa cave, onde se encontrava uma, (na época), muito disputada sala de bilhares.
A decoração inicial produziu o milagre que ainda hoje perdura, apesar de pouco restar dela presentemente. Mas todo o recinto ganhava um ar acolhedor e recolhido, com as madeiras de um castanho-escuro, os maples de couro, igualmente de castanho-escuro, colados juntos às paredes, circulando todo o espaço. Mesas e cadeiras a condizer e um balcão que dividia a sala em duas, sem as tornar isoladas, como hoje acontece, pela intromissão de uma parede que não fazia parte da estrutura original.
A iluminação era dourada, discreta, difusa, pequenos candeeiros desciam do tecto sobre as mesas, o ambiente era intimista, o que terá seduzido a clientela destas avenidas novas, que iam surgindo lentamente por estes lados.
Não muito longe do cruzamento da Avenida de Roma com a Avenida dos EUA, nesta praça onde se encontram frente a frente o Vavá e o Luanda, começavam as quintas e os quintais, viam-se rebanhos de ovelhas e cabras e cultivavam-se as couves.
Do Areeiro à Avenida do Brasil, a Avenida de Roma era o exemplo da modernidade em Lisboa. Aqui se vinham descobrir as novidades, na moda, nos usos e costumes. Os quarteirões encheram-se de jovens de novas profissões: publicidade, moda, canção, cinema, televisão, aviação, arquitectura, decoração, etc.
Mas, por detrás dessas luxuosas avenidas novas, existiam novos bairros de habitação social que contribuíam igualmente para o aparecimento de uma população diferente e diversificada.
Foram esses os frequentadores habituais do Vavá nesses primeiros anos. Foram eles que criaram o estilo da casa e impuseram um tom.
Aberto até de madrugada (fechava às duas da manhã), permitia a criação de tertúlias espontâneas, de amigos e conhecidos que todas as noites ali se reuniam para falar e discorrer sobre os mais variados temas, com a política sempre como prato de resistência.
A proximidade da Cidade Universitária criava outra clientela, maioritariamente irreverente e interventiva. Os alunos que vinham estudar para a capital escolhiam quartos de abrigo perto das faculdades. Este era outro potencial cliente, que o Vavá logo aglutinou. A contestação universitária que eclodiu em pleno durante a crise académica de 1962 foi dispersando pólos de inquietação. Os cafés eram centros de estudo, mas igualmente focos de rebelião, onde se discutia e se organizava a revolta.
Muitos escritores têm relembrado, em saborosos textos, tertúlias célebres ao longo das décadas. Não vem ao caso historiar, mas Lisboa esteve bem provida destes locais de referência obrigatória, e não há certamente quem ignore o papel do Martinho da Arcada, da Brasileira do Chiado, do Nicola, do Café Gelo, do Monte Carlo, do Ribadouro, de tantos e tantos outros. Escritores e pintores deixaram marca num local, actores e encenadores eram habituais noutros, os cinéfilos reuniam-se sobretudo no antigo VaVá, mesas pegadas com cançonetistas e baladistas dos idos de 60, e, antes do 25 de Abril, políticos e “gente do reviralho”, como então eram chamados os opositores ao regime, apareciam um pouco por todo o lado, acumulando funções na maioria dos casos.
Não havia ainda televisão em doses industriais, para agarrar audiências pelos processos mais singulares; não havia internet, chats, blogues ou Facebook; não havia ainda Betas, VHS ou DVDs para se verem os filmes em casa; não havia concertos rocks todos os dias, nem espectáculos a toda a hora; não havia as drogas pesadas a influir negativamente nos horários dos donos dos cafés, que se querem ver livres de tão ingratos clientes, e fecham muito mais cedo; não havia a ameaça da violência urbana que apesar de tudo pesa sobre o comportamento de muita gente que prefere a segurança do lar à incerteza das ruas; nem havia, sobretudo, estes mercantis balcões de agora, onde as pessoas tomam apressadamente café, enquanto outras comem sofregamente uma sopa e pastelinhos de bacalhau, bifanas ou mesmo “pratinhos” de feijoada à transmontana, antes de regressarem ao seu balcão no centro comercial ou à secretária no escritório.
O Vává foi mudando com os anos, deixando sempre saudades do velho Vává, de sofás de cabedal castanho encostados às paredes, de luz difusa e discreta, de acolhedor conforto. Por lá paravam o Villas-Boas, o Pedro Bandeira Freire, o João Maria Tudela, o Fernando Tordo, o Paulo de Carvalho, o Carlos Mendes e tantos outros, alguns deles agora já acompanhados das respectivas e respectivos, com a prole a gatinhar por entre mesas e cadeiras, ganhando já, se calhar, o mesmo “vício” de ali se encontrarem no futuro; por ali passam também personagens bisonhas de tristes recordações, ali ficam suspensas memórias efémeras ou persistentes. De entre as muitas figuras já mencionadas, não posso deixar de referir o Manuel Maria Carrilho, sorumbático como só ele, lendo o seu jornal, geralmente sozinho, sem grandes conversas com a restante plebe, sempre com aquele seu ar de superioridade que o caracteriza. Era ali que se discutia o presente do cinema, do xadrez, da televisão e da canção portugueses, ali se debateu o futuro da TAP, ali se comentava, à segunda-feira, os “roubos” dos árbitros, etc
Os cafés de Lisboa tendem a desaparecer, salvo algumas excepções e os que restam são já sombras de um passado que procuramos apesar de tudo manter vivo, contra a arremetida das leis inexoráveis do comércio, da cobiça dos bancos, do poder da televisão, da proliferação de bares e discotecas. São, aliás, os bares e as discotecas que, de certa forma, vieram a ocupar o lugar desempenhado pelos cafés, reunindo tertúlias de amigos, agora ao som da música de momento
A última grande transformação do Vavá data de 2017, quando a empresa Petrónio e Gonzaga, Lda foi comprada aos anteriores proprietários pelos sócios Pedro Ferreira e João Simões. O café restaurante sofreu uma profunda remodelação, mantendo e reabilitando o espólio artístico. A inauguração aconteceu a 21 de Julho de 2017 e, não muito depois, a casa foi considerada “Loja com História” pela Câmara Municipal de Lisboa.
Estranha homenagem a um jogador brasileiro que aparece a dar nome a um café restaurante no cruzamento da av. de Roma com a dos EUA, em Lisboa. “Vavá” era mesmo o nome por que era conhecido Edvaldo Izídio (Recife, 12 de Novembro de 1934 – Rio de Janeiro, 19 de Janeiro de 2002), jogador brasileiro de futebol, bi-campeão mundial nas copas de 1958 e 1962, conhecido também por “peito de aço”. Nascido no Recife, Pernambuco, foi como avançado da selecção brasileira bicampeão mundial nas campanhas da Suécia (1958) e do Chile (1962). Iniciou a sua carreira no Sport de Recife, transferiu-se depois para o Rio de Janeiro (1952), para jogar no Vasco, passou pelo Atlético de Madrid, Palmeiras, América do México, San Diego, dos EUA, e Portuguesa do Rio. Conquistou dois campeonatos cariocas pelo Vasco da Gama e um paulista, pelo Palmeiras, além das duas Copas do Mundo pela selecção.
Morreu aos 67 anos, na Clínica São Victor, na Tijuca, zona norte do Rio de Janeiro, após internamento por três dias com insuficiência cardíaca, e enterrado no Cemitério do Catumbi.
Numa época em que no Brasil havia Pelé e Garrincha, por quê optar por Vavá?
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