Mais
    ASSINE O AVEIRO TV E AJUDE A IMPRENSA REGIONALspot_img

    A Vaidade de Spínola na Guiné​​

    Na fotografia, António de Spínola surge a inaugurar uma escola na Guiné com a teatralidade calculada que sempre o acompanhou. O uniforme polido, o monóculo perfeitamente ajustado e a postura estudada serviam menos para assinalar uma obra e mais para transmitir à metrópole a imagem de um governador esclarecido, disciplinado e modernizador. Na prática, a escola era um cenário útil para reforçar a narrativa oficial, não um símbolo de mudança estrutural no território.

    A distância entre a pose e a realidade era gritante. As populações continuavam deslocadas, o PAIGC expandia posições e o exército português enfrentava uma guerra difícil, sem meios suficientes e com operações que raramente cumpriam as expectativas. A retirada trágica do Ché Ché, que deixou dezenas de militares mortos ao atravessar o rio Corubal, evidenciou erros graves de comando. A Operação Mar Verde, anunciada como uma demonstração de audácia estratégica, falhou em alcançar os resultados que Spínola prometera. E no terreno, entre matas e destacamentos isolados, a moral oscilava enquanto a propaganda tentava impor uma narrativa heroica.

    Nessa fase, Spínola já jogava em dois tabuleiros. De um lado procurava agradar a oficiais como Otelo e outros quadros militares emergentes, mostrando-se compreensivo, próximo, atento às suas críticas e às necessidades operacionais. De outro lado, construía para Lisboa a imagem do fiel servidor do regime, obediente, disciplinado e plenamente alinhado com a visão imperial da ditadura. Era o duplo jogo político de quem percebia que o conflito colonial poderia ser a porta de entrada para ambições muito maiores.

    Entre os próprios militares, a confiança no general começava a vacilar. Relatórios discretos eram enviados para Lisboa dando conta das “tretas”, como lhes chamavam, publicadas nos jornais para enaltecer Spínola e os seus protegidos. A contestação era especialmente forte entre os artilheiros, sempre rigorosos e tecnicamente exigentes. Criticavam a fragilidade da estratégia de defesa de Bissau, que consideravam mal pensada e perigosamente otimista. A sua visão prática contrastava com a retórica grandiosa que o general fazia circular na imprensa.

    A verdadeira fissura entre o mito e a realidade revela-se na reação de Spínola ao saber do assassinato de Amílcar Cabral. Não houve indignação pública nem firmeza militar. Apenas um murmúrio seco, quase resignado: “Bem, estamos tramados.” Era a confissão íntima de um comandante que sabia que a guerra escapava ao controlo, mesmo enquanto continuava a posar para cerimónias e inaugurações cuidadosamente registadas.

    A vaidade, mais do que um traço pessoal, era instrumento político. Alimentava o regime, servia a propaganda e consolidava a figura de Spínola como peça indispensável num império que se desmoronava. Mas também alimentava as suas próprias ambições, cuidadosamente cultivadas entre fotografias, discursos e operações falhadas.

    É essa duplicidade que a história regista: o general da pose impecável e do gesto calculado, estratega de palco, figura de brilho fácil e substância frágil, sempre atento ao jogo político que se desenrolava por detrás das câmaras.

    Ao contrário de Eanes, aceitou o título de Marechal.

    PUBLICIDADEspot_img
    Paulo Freitas do Amaral
    Paulo Freitas do Amaral
    Docente universitário e do ensino básico e secundário, historiador e político português e é descendente da família real portuguesa, de Pedro Rodrigues do Amaral, conde palatino e colaborador do Papa (séc. XV).

    CONTEÚDO PREMIUM

    OS NOSSOS COLUNISTAS

    SIGA-NOS NAS REDES SOCIAIS

    31,585FãnsGostar
    21,589SeguidoresSeguir
    4,589SeguidoresSeguir
    4,789SeguidoresSeguir
    4,152InscritosInscrever
    ×
    Subscrição anual

    [variable_1] de [variable_2] subscreveu o Aveiro TV.  Clique para subscrever também!